Lembrei agora, porque tinha muito que pôr este texto na internet. Ele foi escrito por um amigo de uma geração acima da minha do bairro onde me criei, estudante de letras da PUCRS e hoje meu amigo. Este texto foi antes da reforma ortográfica, então qualquer errinho gramatical é porque não quis modificar o texto original, não sou capaz, posso estragar a magia do que foi dito, estragar a poesia para meus ouvidos. Espero que vocês gostem, e se identifiquem, cada um do seu jeito e da sua maneira, vamos lá...
UM LUGAR
Aos meus amigos...
Nunca pensei que as dezoito anos teria minha primeira aposentadoria. Era como uma baixa de quartel. Retirar-se da corporação. Não tinha mais tempo para frequentar aquele lugar e quando tinha não me sentia tão a vontade. Meus amigos também se aposentavam, chegando alguns até a mudar de bairro.
É com nostalgia que observo o campo de medidas irregulares onde marquei meus poucos gols de jogador limitado que fui. Quatro na linha e um no gol. A fórmula perfeita para um jogo que poderia durar horas e resultar em placares alucinantes como 10x08, 12x09, 15x06. Os times eram formados através de um processo bem democrático. Minutos antes de começar a partida os jogadores eram escolhidos um a um, por alguém disposto a assumir tal responsabilidade. O critério de escolha era a habilidade de cada atleta.
As regras sempre pertenceram ao campinho e nunca, digo nunca, podiam ser violadas. Quando algum time visitante vinha jogar em nosso território contra a nossa seleção, da qual nunca fiz parte, eles é que tinham de se adaptar as leis da casa. Quem chuta busca, escanteio cobra-se com a mão e a marcação de falta é decidida no grito. Outra coisa que nunca precisou ser esclarecida entre nós eram as medidas de nossa casa, delimitadas pelo desnível da cancha de bocha nunca finalizada de um lado e o poste de luz do outro. Sendo assim, a lateral que fica do lado do poste era pouco mais que um metro e meio maior que a outra.
Ao final de cada jogo, ou jogos no caso de haverem mais de um time, os jogadores ficavam ali pela praça, sentados nos bancos e em um tronco de árvore improvisado como assento. longas conversas se desenreolavam, nada muito íntimo. Falava-se de tudo. Uma visão adolescente sobre o mundo que nos cercava. As meninas normalmente não frequentavam o campinho e quando apareciam, não recebiam a merecida atenção.
O que me conforta é saber que minha ausência não resulta no abandono daquele lugar. Nos últimos meses, outra geração conquistava autonomia suficiente para tomar conta do local. Estes novos freqüentadores abraçaram o campinho como eu o abracei. Respeitaram suas regras e até melhoraram nossa casa, coisa que poucas vezes fizemos. Mesmo assim zelamos por aquele pedaço de terra do qual nos sentíamos donos. Lutamos contra os moradores que ameaçaram transferir o campo para outra praça, dizendo que construiriam um campo maior e em melhores condições que o nosso. Relutamos. Não tinhamos bons argumentos, simplesmente não queriamos sair dali e refutamos a idéia. Chegamos a usar da força como ferramenta de protesto quando numa madrugada destruímos a cancha de bocha que estava sendo construída ao lado do campinho e sumimos com as golerias do campo novo na outra praça.
O tempo passou. Sei que a geração que me sucedeu, hoje foi substituída por outra que mal conheço. Só sei que quando os vejo me vejo menor. Antes de mim, tenho conhecimento de outras duas gerações que tão pouco sei sobre seus paradeiros. Sinto vontade de voltar lá agora. Às vezes nos encontramos no banco para tomar um mate, só que hoje, ao contrário de outros tempos, este encontro é cuidadosamente agendado. Na última vez fui pego de surpresa. A ausência de alguns jogadores nos obrigou a jogar de calça jeans. Bom para relembrar outros tempos, mas foi estranho. Não somos mais os mesmos e perdemos o jogo. A magia daquele lugar continua igual. Ficamos sabendo que contra a vontade dos jogadores a fogueira de São João continua sendo armada no meio do campo, o que resulta na inutilização do mesmo por mais de uma semana.
O campinho é mais que um lugar onde se joga futebol. É um lugar que eu ajudei a criar. Um lugar onde formei amigos. O lugar que me deu a autoconfiança que tenho hoje. O campinho é um lugar que eu aprendi a amar.
Vandré La Cruz.